Minha vida que parece muito calma tem segredos que preciso revelar, não apenas para que deixem de ser o que são, mas para que possam também ser algo mais que um revelar-se. Em 2018, estive diante de um desafio gigantesco, talvez o maior da minha vivência nesta encarnação, que dilacerou a minha alma de forma extremamente severa. Do tipo que me fez ter pensamento suicida tal a incredulidade diante do que estava acontecendo na minha própria história tão marcada por valores e princípios diametralmente opostos ao fato. Não conseguia imaginar, no plano racional, porque cargas d’água precisava enfrentar algo tão fora do meu contexto. 


Exatamente quando me fazia essa pergunta, em um sábado à noite, chorosa, recebi mensagens no celular com um convite para participar de um minicurso de constelação familiar sistêmica. Quando perguntei o valor do investimento, a interlocutora disse sem pestanejar: “nada. É um presente do Universo para você”. Desde então, minha consciência parecia gritar como se houvesse algo além dela própria. 


Uma espécie de HD externo que me instigou a mergulhar em uma busca espiritual profunda, da qual só tenho clareza hoje ao analisar minha linha do tempo. Acontecimentos de toda natureza, alegres e tristes, inauditos e previsíveis, foram se sucedendo em uma espécie de alternância sincrônica da qual eu conscientemente, além de não dar conta, me via incapaz de estabelecer uma relação causal entre elas. 


Não era a primeira vez que experimentava a constelação familiar sistêmica. Cerca de um ano e meio antes, havia constelado, no instigante campo xamânico, uma sensação interna de desordem que virava e mexia voltava à tona nas sessões de terapia realizadas com uma profissional que, durante dez anos alternados, foi um porto seguro para minhas emoções. Comparava nosso trabalho com o de uma assistente e de uma escafandrista. 


Enquanto eu mergulhava nas profundezas de um oceano de memórias e lembranças sem fim, em busca da minha mais original identidade, ela ficava segurando o cabo da parafernália na superfície. Ao mínimo sinal de que havia chegado em um lugar de dor e inquietação maiores ao que podia suportar, ela, prontamente, não só me içava, como também me recebia com um café quentinho e um abraço cheio de calor humano capazes de me devolver as forças e a autoconfiança. 


Na segunda experiência com constelação familiar sistêmica, decidi pesquisar a sensação constante de escassez, abandono e rejeição. A resposta não poderia ser mais assertiva. Por amor, estava honrando a memória de minha avó materna que foi uma figura central da minha infância e adolescência. 


A partir dessa descoberta que balizava, principalmente, mas não só meus afetos, assim como também outras formas de expressão no mundo, presente e passado passaram a conviver no meu dia a dia como se estes dois tempos distintos coexistissem na mesma dimensão. Hoje e só hoje consigo ter clareza dessa experiência, claro. À época, era tudo muito confuso e desconectado. Estava, porém, enganada. Havia um fio condutor, unindo todas as partes e dando sentido a tudo o que eu vivia. 


A pandemia de Covid-19, que chegou em janeiro de 2020 ao Brasil, parecia mais um elemento de cisão entre presente e passado. Até entender que ela era mais um convite à unificação da minha experiência humana foram quase três anos. E tome mergulho. E tome falta de ar. E tome sobe e desce com escafandro, café quente, abraço, tristeza, choro, incerteza, decepção, velório, medo, pavor, anestesia na veia, tardes de chuva, estudos, separação, mortes, sonhos lúcidos, reencontros e vivências que antes nem passavam pela minha cabeça. 


Entre elas, a Formação em Impacto Social de modo online, a participação inédita em um curso para mulheres negras empreendedoras que reuniu gente de norte a sul do país, a Formação para Lideranças Femininas Negras e a participação em um Clube de Leitura composto por artistas de diferentes matizes. Vivi também em janeiro deste ano uma experiência incrível por meio de uma massagem da Ayurveda. Deitada, totalmente nua, em uma maca, sendo tocada por quatro mãos femininas, e mergulhada em um cenário que remetia à preparação de uma deusa para um ritual africano, despertei memórias ancestrais registradas em meu corpo. 


A soma de todas essas experiências ancoradas na busca por uma consciência ampliada, iniciada em 2005, chegou assim, dias atrás, enquanto ouvia a música Drão, de Gilberto Gil. É que, por alguma razão, imaginava nunca ter experimentado o amor, porque o associava obviamente a um ideal fantasioso objeto de minha total ignorância em relação ao sentimento que criou e move o Universo. Por desconhecê-lo profundamente, não tinha maturidade para compreender que sempre foi ele que caminhou comigo em todos estes meus 54 anos de vida. 


Nas quedas, nas noites insones, nos erros, na dor, na culpa, na tristeza era ele me moldando, permitindo e acolhendo meus erros de aprendiz nesta dimensão. Nas alegrias, ele estava lá com a bandeira enorme, dizendo: vem por aqui. Gil, só agora compreendi que o amor “de gente” é como um grão. Uma semente de ilusão. Tem que morrer pra germinar. Mal sabia que meu Drão vive no lugar que sequer imaginava. “Ele está no meio (dentro) de nós”. 


Foi assim, ao som da Bahia de Todos os Santos, que, em mim, fez-se a primavera num dia desses de outubro de 2022.  

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