Já era madrugada quando ouvi batidas na janela do meu quarto. Era ele, eu sabia, pelo toque na madeira que ele mesmo havia escolhido para me fazer um presente simbólico, quando decidi ver o mundo de outra forma. Acordei assustada e levantei de um pulo só. Algo bem diferente estava acontecendo em sua vida. Pela primeira vez, meu melhor amigo experimentava as dores e as delícias de um amor arrebatador. Confesso que fiquei muito enciumada no começo. 

Cá pra nós, sempre tive uma quedinha por ele desde a meninice. A gente se amava de graça. Sabe o coleguinha da vizinhança que entra na sua frente para receber aquela bolada durante um jogo de queimada só para te proteger? José era assim comigo. Colhia amoras e separava as maiores e mais docinhas para a gente saborear juntos debaixo do enorme pé de manga que havia no quintal da minha casa, onde ele me ensinava a jogar bolinha de gude. 

Na adolescência, a gente se grudou mais ainda, porque decidimos formar uma dupla - eu voz, ele violão -, para cantar só música brasileira da melhor qualidade. O danadinho aprendeu a tocar ao som de mestres: Baden Powell, Egberto Gismonti, Pepeu Gomes e Armandinho. Parênteses. A gente amava Pepeu! “Ser um homem feminino não fere o meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino”. Fecha parênteses.  

Os ensaios da dupla eram só nos finais de semana, porque depois da aula, eu tinha que ajudar nas tarefas de casa e José desempenhava a função de braço direito do pai na pequena marcenaria da família. Inteligente como ele só, abraçou com desenvoltura o ofício que vinha de gerações. Batizamos a dupla com o singelo nome de “Os Joaninha”. Tudo porque um dia, enquanto desvendávamos desenhos nas nuvens, preguiçosos ao sol, um desses bichinhos posou bem no nariz de José. Imediatamente ordenei que ele ficasse imóvel até que o serzinho que eu julgava sagrado voasse. O que levou nada menos que duas horas. 

Os Joaninha se apresentavam nos barzinhos da cidade, nas missas da Matriz, em festas de casamento e aniversários. Um sério problema nas minhas cordas vocais, porém, fez a dupla silenciar prematuramente. Foi, inclusive, no nosso derradeiro show, nas bodas de prata do Seu Joaquim e da Dona Ana, que eles se viram pela primeira vez. A atração foi fulminante. Também pudera. Maria, filha do casal, era realmente de uma beleza que inquietava. Tudo nela era harmonioso. A voz suave, a emitir palavras como se fossem ondas de um mar tranquilo, combinava com o cabelo levemente encaracolado. Seu corpo esguio, de braços alongados, acenava para uma doçura sem fim. 

Ela não morava muito longe da gente, mas um certo mistério a envolvia desde criança. Tanto que passou a infância e a adolescência praticamente reclusa, como que sendo preparada para uma grande jornada. Por isso, sua aparição pública era, por si, um acontecimento.  O olhar cruzado entre os dois foi de impressionar. Parecia que ela o esperava por toda a vida. Tentei atrapalhar a cena, jogando uma piadinha em direção a ele na esperança que voltasse os olhos para mim, como sempre fazia. Bobinha. Os olhos dele já eram só e unicamente dela. 

À medida em que as visitas à casa do Seu Joaquim ficavam mais frequentes, à minha despencavam. Não foi preciso muito tempo para concluir que meu amigo estava apaixonado. À noite, ouvia, do meu quarto, o dedilhado impecável em seu violão e a voz baixinha a sussurrar: “O astronauta ao menos viu que a Terra é toda azul, amor. Isso é bom saber, porque é bom morar no azul, amor. Mas você, sei lá. Você é uma mulher. Sim. Você é linda, porque é.” 

Por isso, ao reconhecer sua batida aflita na minha janela, às 3 da madrugada, imaginava mesmo que a motivação se devia às coisas do amor. Esse sentimento revolucionário, transgressor que desafia as mais arraigadas convicções de um pobre mortal. Liberei logo a tranca e escancarei minha visão de mundo para o homem mais doce, pulsante e encantador que já conheci na vida. 

E lá estava ele, tremendo feito vara verde, com a alma aos borbotões. Convidei-o a entrar. Pulou a janela. Queria me contar o sonho que acabara de lhe ocorrer. Traduzir as mensagens do inconsciente era mais uma de nossas características em comum. A gente acreditava piamente que vivia uma outra vida enquanto dormia. Indo direto ao ponto, José me contou da gravidez de Maria sem que ele a houvesse tocado. Antes, porém, que eu esboçasse qualquer reação, emendou com a história do sonho. 

Nele, uma criança de cinco anos, sorridente, com asas coloridas de borboleta, desenhava com giz, no chão do seu quarto, a figura de um homem e de uma mulher nus, aos beijos. Ao se aproximar, José notou que as figuras humanas lhe eram familiares, mas não as reconheceu. Voltou-se para a criança e perguntou de quem se tratavam. 

A criaturinha eufórica ascendeu do chão pelo bater suave das asas e disse: “é você e a mamãe. E eu tô aqui, ó. Bem na barriguinha dela. Não foi através de você que fui parar aí, papai, mas será que pode cuidar de mim? ” -, suplicou. Foi assim que cresceu, no coração do meu amigo José, a história mais linda de amor a três que a mente humana já foi capaz de conceber.

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