A primeira vez que ouvi Ana Cañas foi bem inusitada, afinal estava saindo de um motel. Depois de horinhas da combinação perfeita entre amor e prazer, ainda fui docemente torturada com o “Coração selvagem” dela, para elevar à enésima potência tudo o que tinha vivido instantes antes. Por isso, a expectativa de vê-la pessoalmente, no palco, no show “Ana Cañas canta Belchior”, não podia ser exercício mais divertido para a memória afetiva.

Nada, porém, do que aconteceu dentro e fora de mim, no Teatro Paschoal Carlos Magno, em Juiz de Fora, era passível de ser previamente imaginado. Primeiro, porque a mulher menina é um furacão. Quando ela pisou no palco com um estoque de energia de fazer inveja a qualquer companhia elétrica das minas gerais, logo pensei: não é só o coração que guarda selvageria. Tem mais coisa aí.

 E tinha.

Aos poucos, com sua silhueta esguia e seus gestos coreografados para casar com o vai e vem e o desce e sobe das melodias belchiorAnas, ela contou sua difícil trajetória na infância e na adolescência. Do distanciamento da mãe, da criação pela avó paterna em uma casa com paredes marcadas por furos de bala de revólver, da vida em uma pensão, dividindo espaço com garotas de programa que aprendeu a respeitar, da primeira vez que se apresentou em público, após ouvir (para imitar) divas da soul music americana, e concluir que não queria saber de outra coisa na vida a não ser cantar.

Moderna, emancipada e de cabeça feita em relação ao que é ser humano no século XXI, Ana Cañas é o retrato das mulheres desta nova geração. Não por menos, a música mais performática naquela noite fria de JF foi, sem dúvida, a imortalizada na voz da deusa Elis Regina. A poesia sofrida de “como nossos pais”, gravada pela primeira vez em 1976, não combina em nada com essa nova “pimentinha”. E foi aí que vi minha vida e a dela se alinharem em paralelas na forma menos esperada para aquela noite. 

Perdão, Belchior, mas eu também não vivo mais como os nossos pais. Já vivi, claro. E repeti e repeti e repeti e repeti como previsto na boa retórica freudiana. Porém, foi ali, embalada por centenas de pessoas, no charmezinho do Paschoal, que minha garganta travou para a repetição de ciclos que não apenas nada mais agregam, como também não combinam com a nova mulher que ajudo a parir à imagem e à semelhança dos meus mais profundos e latentes desejos de alma. 

E, assim, naquele escurinho do teatro, constatei que não vivo mais "como os nossos pais", porque honro e cuido do legado que deixaram e deixam, mas sei que pertence unicamente a eles.  Não é o meu. Não vivo mais "como os nossos pais", porque a educação antirracista que não tive hoje está presente em minha rotina. Eu sou neguinha. Não vivo mais "como os nossos pais", porque o mundo interno que habito exige uma nova consciência e juventude. Tenho fragmentos generosos de ambas. 

Não vivo mais "como os nossos pais", porque o “você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem” perdeu a data de validade. Não é mais a cova medida que me cabe neste latifúndio. Não vivo mais “como os nossos pais”, embora reconhecer o que viveram seja fundamental para essa completa sensação de liberdade no presente. Sou uma mulher L-I-V-R-E. Sinto que sinto. Penso e exercito sem medo minha individualidade.

Não vivo mais “como os nossos pais”, porque não tenho nem idade para me comparar às jovenzinhas e aos jovenzinhos que inspiraram Belchior. O tanto, porém, de gente que ainda vive de (ultra) passado é suficiente para explicar muito dos dramas humanos atuais. Afinal, a resistência ao novo é uma forma de prisão e de subserviência para a alma.

Curiosamente, no ano seguinte ao lançamento da canção de Belchior cujo título virou mantra, Ilya Prigogine (1917-2003), químico russo naturalizado belga, ganhava o Prêmio Nobel de Química por seus estudos em termodinâmica de processos irreversíveis com a formulação da teoria das estruturas dissipativas. Em poucas palavras, a Teoria do Caos. 

Se tudo sempre será imprevisível e caótico no Universo, porque nos agarramos tanto à ideia de estabilidade, insistindo em viver como os nossos pais? De onde tiramos que pode haver conforto em algo que simplesmente contraria a dinâmica sobre a qual nossas vidas gravitam? Não será esta a maior de todas as nossas ilusões? Não estamos construindo bases em um terreno que simplesmente não existe? Como querer estabilidade (também conhecida como zona de conforto) no emprego, nos relacionamentos, na vida em sociedade quando a ciência já provou que o caos é a verdadeira forma de organização? 

Fato é que meu coração selvagem acena cada vez mais com gosto pelo imprevisível, pelo que ainda não foi dito, pelo que não foi vivido, pelo desconhecido, pelo que oscila. Amo o cheiro fresco da novidade, daquilo que não sei, e me afasto com velocidade de tudo que aprisiona: pré-conceitos, paradigmas, regras desconectadas das leis herméticas que regem o Universo quer a gente as conheça ou não, e de crenças que limitam o que nasceu para ser ilimitado. 

Como filamentos da divindade, somos seres de infinitas possibilidades. Pena que poucas pessoas saibam disso, enquanto a maioria escolhe viver repetidamente como nossos pais, como nossos pais, como nossos pais. 


PS: Ana Canãs compartilhou, em seu perfil no Instagram, parte do conteúdo que escrevi sobre o show dela em um post, além de comentar, usando sete cabalísticos “coraçõeszinhos selvagens”, na minha publicação. Como não amar a imprevisibilidade?  

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